sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A Hora do Demônio

As guitarras de Eric Clapton e Jeff Beck dedilhavam a ponte de Can’t Find My Way Home, fazendo as caixas de som pulsarem em harmonia. António Marín acompanhava o dedilhado em uma guitarra invisível, movendo os dedos e balançando a cabeça. Essa era uma vida que poucos conheciam. O negócio é o seguinte: António Marín tinha uma vida secreta. Aos diabos com isso, António Marín vivia três vidas pelo menos. “Mas eu não consigo encontrar meu caminho para casa”, cantarolou em português, fazendo um eco exógeno para a letra da música. Estava sentado no lado do motorista no pequeno carro britânico, parado em uma escura viela do centro de Oxford. Olhou para o relógio: três da manhã, a Hora Morta dos poetas; Hora do Demônio para os fanáticos religiosos e a Hora de Marín para Harry Gorgorith, o próximo nome de sua lista.
António desligou o rádio, sentindo uma tristeza por cortar a música durante o solo e desceu do carro, sem tirar os olhos do céu sem estrelas, talvez procurando por algo que deveria estar lá. Torceu a boca e se concentrou.
Maldita hora. Sempre agia às três da madrugada. Meia noite não funcionava para ele. Era a hora entre o bem e o mal, quando o mundo começa a se desligar e as pessoas deitavam em suas camas ou se preparavam para fornicar, talvez planejando o dia seguinte ou se fazendo preces para a prova de matemática. Meia noite e todos estão com um olho aberto e olhos abertos não são bons para a vida secreta de António Marín. Ao menos não para esta, veja bem. Uma, duas horas da madrugada e as ruas estão vazias, excluindo uma ou outra ronda policial, vigilantes comunitários, bêbados e pervertidos. São presenças indesejadas, almas perdidas que vagam pela noite, procurando suas presas, encontrando inocência para manchar e estuprar. Marín os desprezava e desejava colocar suas mãos nas gargantas sujas dos predadores noturnos. Mas não agora, não hoje. Mais tarde do que isso, cinco da manhã, digamos, e os padeiros estarão acordados. Talvez aquele aluno desesperado com a prova de matemática já está com o abajur ligado, tentando absorver as fórmulas ignoradas por meses a fio. Moleque imbecil.
Três da madrugada, caro leitor. Eis o sweet spot de António Marín, a hora e a vez de seu compromisso, os sessenta minutos do dia em que o tempo congela e Deus hesita em seu trono celestial, pestanejando com pálpebras pesadas. Era quando ele entrava em ação.
Marín andou nas pedras antigas e encharcadas da rua em que estava, equilibrando seu centro de gravidade para não escorregar. Chegou na pequena casa de número 1906 e parou, olhando ao redor. O mundo parecia deserto e ele sorriu. A Hora do Demônio, pensou. Retirou duas barras de metal retorcido e, mais rápido do que você imagina, destravou a porta e ganhou acesso para o interior. Olhou rapidamente para as paredes da pequena sala, certificando-se da inexistência de alarmes. Nada. E esse era o problema, na opinião de Marín: as pessoas se tornavam descuidadas, preguiçosas e, na maioria dos casos, prepotentes. Um sentimento de imortilidade normalmente atingia seus alvos, o que tornava seu trabalho - um dos trabalhos, vamos lembrar - fácil, tão fácil que chegava a ser entediante. O que não fazia sentido, em sua opinião, uma vez que para entrar em sua lista, o cliente tinha de estar metido na merda até o pescoço. Merda séria, do tipo que deixa corpos empilhados por todo o caminho. Nas pontas dos pés, avançou para as escadas e parou por duas vezes quando os degraus rangeram, os sentidos afiados em prontidão. Por todo o percurso, analisou os pequenos indícios que traduziam o cotidiano da casa. Os móveis estavam limpos - até mesmo a base do corrimão estava polido - e indicavam um ambiente bem planejado; havia latas verdes de heineken espalhadas na mesa de centro e na cozinha, onde diversas travessas descartáveis de refeições congeladas permaneciam jogadas e esquecidas, parcialmente amassadas depois de inúmeros jantares sem sabor e de nutrientes sem valor. Harry Gorgorith vivia à base de cerveja e pratos feitos, aparentemente. Caso precisasse lutar, não tinha expectativas de enfrentar um Jason Bourne. Novamente, o descuido. A ausência de brinquedos era um alívio. Não porque ele pensaria duas vezes em apagar um pai de família, António Marín estava acima dos laços sanguíneos ou da santidade do seio familiar. O alívio existia por que crianças significavam imprevistos. Crianças têm o péssimo costume de acordar na Hora Morta para fazer xixi ou correr até a cama dos pais, chorando por causa de um pesadelo ou querendo água. Mesmo entediado, Marín não tomaria nenhum prazer em assassinar crianças.
Empurrou a porta semi-aberta e entrou no quarto de Harry Gorgorith. Ele roncava alto, a barriga inchada subindo e descendo com regularidade. Na Hora Morta, todos estão em REM. Harry dormia sozinho e Marín descartou qualquer outro morador na pequena casa. Viu o passaporte russo de Gorgorith ao lado da escrivaninha, o único documento que o colocava naquele país. Marín abriu um zíper de sua jaqueta e recolheu o passaporte, o que daria algumas horas de vantagem sobre a polícia, que precisaria recorrer a medidas mais demoradas para identificar o corpo de Gorgorith.
António Marín ficou parado no meio do quarto, como a sombra do ceifador observando o sono pacífico de sua próxima vítima. Harry dormia o sono dos justos, enquanto cometia atrocidades no submundo político, prejudicando uma longa lista de nomes inocentes. Podia contar ao menos quinze pais de família que conhecia, homens corretos e honestos que perdiam o sono, tentando decidir qual conta pagar e qual serviço seria cortado, água ou gás. Um mundo justo, ele pensou com uma pontada de ira no peito. Marín não sabia ao certo, era parte de seu trabalho resolver problemas com o mínimo de conhecimento, mas era sempre motivo político. Ficava atento aos noticiários logo depois de um contrato e sempre descobria que o morto estava metido em um ou mais escândalo parlamentar. Harry Gorgorith era um homem sujo, mas ele não sabia o quanto. Era uma ignorância cronológia, bem sabia.
Repentinamente, Harry sentou na cama epuxou a gaveta do criado mudo ao seu lado. O assassino viu a arma, uma pistalo .22 provavelmente carregada e engatilhada, e puxou a própria pistola, uma Desert Eagle monstruosa. “Eu não faria isso, Harry. Seria uma escolha… prejudicial para a sua saúde. Você não precisa morrer hoje”, mentiu.
“Quem… quem te mandou?”, Harry perguntou com a voz letárgica e carregada por um sotaque pesado, “foram eles, certo? O Círculo. Eu sabia que esse dia chegaria.”
“Vamos lá, meu chapa, solte essa arma, você não quer continuar apontando ela para meu peito. Eu costumo ficar ofendido com pessoas que me deixam na mira. Estou aqui para te dar um recado.”
“E como sei que você não vai me matar, seu merdinha. Eu não tenho medo de você… ou do Círculo. Apenas uma pessoa sairá daqui hoje. E logo depois, vou pegar um por um deles, hoje mesmo, antes que eles saibam que o… o assassino que eles contrataram falhou. Filhos de uma puta.” A mão de Harry tremia.
“Você quer abaixar a arma, sério”, Marín advertiu. “Meu dedo é bem mais rápido que o seu, tenho certeza. E depois o quê, Harry, hein? Você vai colocar uma calça nessa sua bunda gorda e perseguir todo o Círculo?”, Marín não tinha idéia do que falava, sabia apenas que precisava blefar se queria evitar que Harry disparasse em seu peito. “Nós dois sabemos que você não conseguirá passar pelo primeiro segurança da primeira casa, cara. Estou aqui para te dar uma nova chance. Você fodeu tudo, cara, cagou em todo o plano. Eles me mandaram para te fazer desaparecer… não mate o mensageiro, certo? Pegue seu dinheiro, suas coisas e suma. Mude o nome, tinja o cabelo. Vá vender pranchas de surf em Porto Rico, vá dar a bunda, não me importo com o que você irá fazer daqui em diante. Desde que suma daqui. Nessa noite, hoje. Se você disparar agora, pode ser que erre, pode ser que me mate. E mesmo que acertar, pode ser que eu consiga disparar. Já viu uma Eagle cuspindo bala? Não sobra nada, cara. Caixão fechado, porra. Então, a não ser que você tenha nascido com esse cu feio virado para a lua, abaixe a porra dessa arma. AGORA!”
Harry Gorgorith não se sentia com sorte e abaixou a arma. Obedeceu, em seguida, ao movimento do homem que estava no seu quarto no meio da noite - procurou pelo relógio que tinha na parede: três e quinze da manhã, um horário injusto para ser despertado pelo seu anjo da morte - e jogou a arma para o pé da cama. “Eu vou, eu vou.” António guardou a arma e Harry suspirou, aliviado. Levantou-se para começar a fazer a mala e comprar o primeiro vôo para a Terra do Nunca, quando sentiu falta do passaporte. Voltou-se para sua arma, tarde demais. Harry Gorgorith nunca viu os dois disparos que destruíram seu cérebro e espalharam massa cinzenta ao redor de seu corpo.
Ele largou a arma de Harry, achando conveniente que ele tinha uma pistola com o número de série raspado e silenciador rosqueado. A Desert Eagle deixaria seus ouvidos doendo e despertaria metade de Oxford. “Obrigado, Harry”, ele disse antes de largar a arma no chão e disparar para o carro.
O pequeno carro inglês pegou na primeira tentativa e ele começou a dirigir para Londres, onde estava hospedado. Escutou músicas antigas por todo o percurso, de Creedence até Queen, passando por Beatles e The Who, cantando as letras em uma tradução simultânea para o português. No caminho, parou para queimar as roupas e as luvas que usava, trocando-se rapidamente para não congelar no rigoroso inverno britânico. Quando parou, olhou para os céus novamente, como se estivesse procurando por algo.
Quando chegou no hotel, António Marín discou para um número e desligou em seguida, retirando a bateria do celular e quebrando o pequeno chip no meio. Missão cumprida com louvor.
Aquela vida de António Marin estava enterrada por mais alguns meses e ele poderia voltar para o Brasil, assumindo novamente sua vida de comerciante de calçados. António Marín, o pai dedicado, vendedor de calçados ortopédicos e Maçom de alto nível hierárquico, um homem que todos conheciam. Poucos conheciam o António Marín apaixonado por miniaturas e ferroramas e meia dúzia de pessoas em todo o mundo conhecia António Marín, o melhor assassino do mundo. Ele não deixava rastros, não fazia pergunta e não mostrava clemência.
Ele empurrou a porta de correr da gigantesca sacada - amava o luxo e sempre ficava nos melhores quartos quando estava trabalhando em um contrato, outro António Marín que pouquíssimos conheciam - e olhou para o céu, sentindo o coração pular uma ou duas batidas com o que viu. Um frio escalou em sua espinha e fez todo seu corpo arrepiar, descarregando uma enorme quantidade de adrenalina. Aquela, caro leitor, era a vida secreta de António Marín que apenas António Marín conhecia.
Durante toda sua infância, nos momentos que definiram suas várias vidas paralelas, Marín via gigantescos números no céu. A primeira vez, o número 54 em letras garrafais, apareceu quando seus pais morreram em um acidente. Ainda se lembrava do momento, os olhos cheios de lágrimas, ranho escapando pelo nariz avermelhado, olhou para cima e achou que estava tendo ilusões, que estava em choque. Em pouco segundos o número desapareceu. Alguns meses depois, enquanto pulava de adoção para adoção, ele via os números no céu, gigantes como planetas colossais em rota de colisão com a Terra. Também avançavam: 55, 56, 60. Ele era o único que os via piscando no céu, dia ou noite. Mas sempre que vivia momentos importantes, para o melhor ou pior, vitórias ou derrotas, eles apareciam sem falha. Seu recrutamento pelo Mossad (120) e, anos mais tarde, quando executou todos os que conheciam sua verdadeira identidade (140, 142, 147 e 148) para desaparecer e iniciar uma carreira autônoma (155).
Depois de seu primeiro assassinato solo (183), Marín entendeu o que eram os números e uma certeza se instalou em seu cérebro. António Marín, o homem que colecionava miniaturas de trens e vendia sapatos para crianças de pernas tortas, o assassino profissional procurado pelo Mossad era, acima de tudo, o antagonista de um livro. Os números que via no céu eram as páginas que desenvolviam o papel que deveria seguir, era a única explicação plausível. Aos poucos descartou a idéia de ser apenas um personagem em um grande livro, não, ele era bom demais para ser secundário. Tampouco poderia ser o protagonista: faltava-lhe carisma, determinação. Tudo que queria era ver crianças de postura saudável e fechar contratos que o enriqueciam em escala astronômica. António Marín, senhoras e senhores, era o antagonista daquela história… desta história. E, pelos deuses, daria tudo de si para ser o melhor antagonista que o mundo já conhecera.
Apoiado na parapeito da sacada, Marín admirava o único número estampado no céu de Londres (1). O sol nascia e número (1), perto do London Eye, se tornava alaranjado. Estava no início do livro, podia visualizar o parágrafo que abria sua história: António Marín observou Londres acordar. Deixava o conhaque descer por sua garganta, queimando seu estômago e aquecendo seu corpo, regozijando-se pelo trabalho bem feito. Repassou rapidamente a madrugada anterior em sua mente, à procura de falhar, mas sabia que seu trabalho era perfeito. Ele era, afinal, o melhor assassino para contratar e suas execuções eram perfeitas. O que António Marín não sabia era que acabava de sair da excessão que comprovava a regra. Talvez estivesse ficando descuidado - adjetivo que dava para seus alvos - ou cansado, mas falhou em reconhecer as pontas soltas.
Ergueu o copo de conhaque que surgira em sua mão e brindou o autor. Note como ele parece olhar para você, veja como ele pisca um único olho em sua direção, um olhar sádico, lunático… perigoso.
O número 1 desapareceu e ele ficou assistindo o sol nascer para mais um dia. Mais um dia na vida de todos aqueles que permaneciam no jogo.
Mais um dia para a grande maioria dos vivos, mas o dia em que a vida de António Marín começava de verdade. Mal podia conter a curiosidade que tinha no fundo da mente. Apostava consigo mesmo até qual página conseguiria chegar vivo.
António Marín voltou para o quarto e se jogou na cama, precisaria descansar o máximo possível: sua verdadeira vida secreta começava agora.

(Fim do Capítulo 01)

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