segunda-feira, 30 de abril de 2012

que ninguém busque o racismo onde não tem

Ela puxou uma pétala.

Do lado de fora do universo, o cavaleiro de armadura branca desferiu um golpe certeiro no flanco esquerdo do inimigo. A ponta da lança trespassou a armadura e o cavaleiro negro urrou de dor.

Outra pétala. Agora já são duas sobre o balcão.

Do lado de fora, o cavaleiro de ébano aperta seus olhos vermelhos enquanto investe contra o outro, mão esquerda pressionando o ferimento e mão direita, também certeira, atingindo o pulso alheio. A lança do cavaleiro branco caiu ao chão junto a um dedo. Era o mínimo, talvez não fizesse falta.

Mais uma pétala arrancada.

O cavaleiro branco salta do cavalo e tira das costas a espada bastarda. O negro, desmontando cuidadosamente, silvando contra o alvo, desembainha a estúpida espada de duas mãos.

Os dedos frágeis da menina arrancam outra pétala da flor. O balcão salpica de amarelo aleatório.

Ambos os guerreiros gritam e rezam a seus deuses. Jogam-se furiosamente um contra o outro, cavalos à distância observando a luta. O universo que separa a cena do balcão tremeluz um pouco e some. A briga agora está lá fora, na rua, uma porta de distância da menina.

Que tira da flor mais uma parte.

O cavaleiro branco golpeia o elmo inimigo e esse, partido ao meio, voa longe, deixando a face monstruosa do outro guerreiro à mostra. Apenas um fino corte de sangue verde escorre do rosto em frenesi.

Mais uma pétala sobre o balcão.

A espada de duas mãos acerta o braço do branco. O cavaleiro negro grita, em êxtase. O cavaleiro branco finta, com meio braço a menos.

Alguém na mesa 8 chama a garçonete. Sobre o balcão, ao lado das pétalas arrancadas, uma flor incompleta aguarda o fim da batalha.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

As Várias Vidas de Zack – 2


“E se eu disser que aqui nessa caixa, tenho o que poderia ser o fim do mundo como conhecemos?”. O homem que segurava a caixa estava vigorosamente embriagado, concluiu Zack. O cheiro do whisky alcançava, forte e acre, as narinas do cansado bartender. O homem parecia uma mancha branca no Clube, vestindo camisa e calças brancas, coberto por um sobretudo inacreditavelmente reluzente e limpo. Cabelos longos e rebeldes, quase prateados, cobriam parcialmente seu rosto, mas era possível identificar um nariz pontiagudo acima de lábios finos; um único olho verde, injetado e delirante encarava Zack, enquanto um tapa-olho repousava em simetria.
Nada como um pirata moderno louco e bêbado para continuar esse dia pirado, pensou desanimado. “Eu diria que o senhor já bebeu o suficiente por hoje e comfiscaria sua chave... mas provavelmente deixaria a caixa”, respondeu afinal.
“Toque na caixa e eu arranco seu coração.” Zack congelou, sem saber como reagir diante da ameaça. A voz embargada transformou-se momentaneamente em um tom sóbrio e sério, sem qualquer traço da bebida, apenas intenções cruas e sinceras.
“Temos um problema aqui?”, finalmente perguntou o bartender.
“Não, desde que você fique longe de minhas coisas. Mais uma dose, dois dedos, sem gelo”.
Zack contornou o balcão e pegou a garrafa, servindo uma dose exagerada da bebida, contrariando todos seus impulsos. Sabia que se ficasse, iria escutar os problemas daquela figura exótica. Hey, a Regra de Ouro já estava quebrada de qualquer forma. Ele queria saber o que havia de tão perigoso naquela caixa e o sujeito estava bêbado o suficiente para contar.
No canto escuro do balcão, há diversos ano-luz de distância, um incessante tic-tic-tic denunciava a presença das três velhas.
Em apenas um gole, o estranho homem de branco bebeu metade do conteúdo que estava no copo. “Desculpe por antes. Assumo uma posição defensiva com essa caixa. Nem sei porque a carrego comigo, deveria enterrar essa maldita coisa no meio do deserto e explodir minha cabeça com uma .12, isso sim seria o...”, um arroto subiu pela sua garganta, “correto. Seguro.”
“Acho que está na hora de você sair do...”, um forte murro no balcão interrompeu Zack. Por alguns segundos apenas a voz de Robert Plant ecoou pelo Clube. Tic-tic-tic, disse um dos extremos do balcão, quebrando a atmosfera pesada.
“Peço desculpa por isso também. Fique e me escute por alguns minutos e sumirei da sua vida, sem ter de pedir desculpa pela terceira vez, eu prometo. Escute bem e não me interrompa, vou tentar ser o mais direto possível. Nessa caixa estão meus pensamentos, em sua forma mais pura e bruta.” Ele olhou Zack com o único olho no rosto. Um olhar embriagado e, no entanto, concentrado e penetrante.
A caixa, notou o bartender, era na verdade um antiga recipiente para cigarros, talvez apenas vinte e cinco centímetros em seu lado maior. Nada daquele volume poderia ser tão perigoso. Qual o tamanho de uma idéia?, uma voz ecoou em sua mente.
“Primeiro algumas coisas que você precisa saber sobre mim. Sou inteligente, não tenho vergonha ou falsa modéstia em reconhecer isso. A porra do meu QI beira duzentos. Eu trabalhava no desenvolvimento de novas tecnologias e hardwares para quem oferecesse trabalho. NASA, Apple, IBM, você cita uma marca e eu listo o que fiz por elas. Amava meu trabalho, amava pensar e colocar as coisas no papel, traçar novas bases para novos horizontes; meus limites ultrapassavam o céu, literalmente. Passava horas debruçado sobre algum projeto sem ao menos desviar o olhar. Eu era bom, é o que quero dizer. Dedicado e inteligente, o que mais poderia oferecer?” Secou o copo em outro grande gole e apontou para o tapa-olho. “Até esse carinha aqui aparecer. Perdi meu olho em uma pequena explosão na minha máquina de café. A ironia nunca me falha: café foi meu combustível por todos esses anos e acabou sendo minha sentença. O olho se foi com uma velocidade impressionante, um pop e pronto, lá se foi minha noção de profundidade. Aqui começa a parte estranha da minha história. Algumas pessoas estão destinadas, acredito, a realizações no mínimo impressionantes, elas mudam o curso da história e se libertam das nossas prisões pseudo-neoplatônicas”, Zack se peguntou quando estaria a japonesa. “Mas para a maioria dos Grandes, dessas pessoas tão incríveis, as condições são impostas, como uma piada de Deus ou dos deuses ou de qualquer filho da puta transcendental que brinca com minha miséria. A perda do meu olho direito foi um ato imposto, veja bem. E disso saiu toda minha... condição, por falta de palavra melhor. A primeira mudança que notei foi quando tiraram as bandagens do que agora chamo de ‘Buraco’, porque é justamente isso que tenho agora; você poderia ver parte do meu crânio, se eu ousasse retirar o tapa-olho.”
Zack colocou um pouco mais de whisky no copo e bebeu da garrafa que tinha nas mãos. A cerveja aliviou a garganta seca. Sentia algo estranho no Clube, algo que não deveria estar acontecendo. Seu balcão parecia o centro de confraternização de um hospício.
“Quando retiraram as bandagens, notei uma mancha negra no tecido que ficou sobre o machucado. Era um pequeno quadrado negro, nada surpreendente. Quando sai do hospital, peguei uma lupa e examinei aquilo com maior atenção. Você conhece a Sequência de Fibonacci?”
“0, 1, 2, 3, 5, 8”, ele recitou sem problemas.
“Exatamente. Lost, magia e Bolsa de Valores, meu bom rapaz. Quando estava de repouso no hospital, fique a maior parte do tempo lendo um livro sobre as diversas abordagens da Sequência e em que locais do mundo natural ela se aplicava com perfeição, como em bromélia, girassóis e crustáceos. Bem, aquele quadrado era na verdade duas imagens sobrepostas, descobri mais tarde. O espiral de uma bromélia e um girassol.”
“Os maiores exemplos da Sequência”, a voz de Zack saiu com dificuldade. Sentia que estavam olhando diretamente para as leis que mantinham a realidade estável. Ele odiou a sensação.
“Foi como ver meu pensamento impresso naquelas bandagens. Meu coração quase parou quando vi as duas imagens. Aos poucos a idéia se instalou na minha cabeça e se tornou natural, verdadeiro clichê. Comecei a testar com pequenos desenhos e equações: tudo que precisava fazer era me debruçar sobre uma folha branca e... imaginar! O raciocínio simplesmente jorrava do buraco no meu rosto e aparecia no papel. Era mágico! Projetos inteiros facilmente desenhados, imagens, quadros, desenhos... Se eu colocasse o tapa-olho e pensasse em plantas elétricas ou em imagens complexas com calma e em detalhes, páginas e mais páginas de material poderiam ser preenchidas em alguns segundos. Nomei qualquer coisa, bartender”.
Zack pensou durante alguns segundos. Na jukebox, outra música tocava, mas ele não registrou qual. “Calvin e Haroldo. E pode me chamar de Zack”.
O homem de branco sorriu e retirou um guardanapo que vinha com uma porção de amendoin. Fechou o único olho por alguns instantes e levantou minimamente o tapa-olho. Zack sentiu a própria realidade se dobrar, sua cabeça ficou leve e ele teve que se segurar em algo para não desabar no chão sujo do Clube. Uma fumaça negra caiu de onde deveria haver um olho humano e aos poucos a imagem de um tigre e de um garoto andando sobre um tronco morto se formou. Com mãos trêmulas, Zack pegou o guardanapo e estudou o desenho. Havia erros de proporção e pequenos detalhes trocados, exatamente como se alguém tivesse desenhado os personagens sem qualquer imagem para se basear, apenas contando com a memória para formar os traços. Um desenho espontâneo de um velho bêbado.
“Incrível, não?” Zack concordou com ele sem desviar o olhar do desenho. “Por alguns meses eu produzi como nunca antes, projetos e mais projetos eram criados e concluídos em questão de horas, minha conta bancária triplicou em algumas semanas. Assim, Zack, finalmente chegamos na caixa”, ele batucava na tampa de madeira. “Responda uma coisa, você sabe o que alguns... especialistas”, ele fez o sinal universal de aspas com as mãos, “dizem dos sonhos que não lembramos?”
Zack buscou resposta no labirinto confuso que era o seu cérebro naquele momento. “Eles... eles dizem que não lembramos de alguns sonhos como um mecanismo de auto-preservação. Acho que alguns sonhos dizem mais sobre nós do que gostaríamos de saber.”
“Exatamente. Alguns meses atrás acordei sem o tapa-olho, o elástico estava frouxo e a proteção deve ter caído no meio da noite. Todas as paredes da casa estavam cobertas com desenhos e equações, medidas e graus. Fiquei um tempo decifrando e montando o que era um manual e acabei com uma máquina gigante montada na minha sala. Um Oscilador Tesla. Quando o tapa-olho caiu, meus pensamentos estavam livres, sem o filtro cultural ou qualquer outro substantivo que você quiser aplicar aqui, o fato é que meus pensamentos mais... primitivos, menos convencionais, escaparam e montaram uma máquina de terremotos! Pior, uma máquina de terremotos que funcionava. Eu destruí um raio de três quilômetros quando a liguei no nível mais fraco. Depois disso, meus pensamentos... meu intelecto, ganhou vida própria. Comecei a perceber padrões e pequenos acontecimentos em corrente que acarretariam desastres. Os Efeitos Borboleta, se você quiser assim chamá-los. Percebi como derrubar governos com uma ligação ou causar pânico com uma notícia falsa, tudo muito fácil. Mas sempre, sempre para pior. Quando uma pessoa olha para seus pensamentos em seu estado mais puro e visualiza o fim de incontáveis vidas, Zack, está na hora de sair desse mundo.”
Zack pensou no poderia fazer pelo homem vestido de branco. Pegar a caixa seria perigoso e inútil, depois de lutar pelo pequeno retângulo de madeira que poderia causar guerras e catástrofes (não havia dúvidas, afinal o desenho do Calvin e Haroldo fora suficiente), o deixaria com algo muito perigoso nas mãos; isso sem considerar que as idéias iriam surgir em uma continuidade torrencial, fluindo pela cratera facial daquele homem. Pela segunda vez em menos de meia hora, o bartender se sentiu impotente. Duas pessoas chegaram com histórias fantásticas do tipo barato, que ele poderia ler nos livros editados com folhas de jornal, brochuras descartáveis que ele poderia comprar na banca de revistas que ficava naquela mesma rua, alguns quarteirões para baixo. Em ambas ocasiões ele não tinha qualquer oportunidade de interferir, ajudar ou interromper o caminho peculiar que aquelas pessoas cruzavam: ele ouvia e assistia os estranhos saindo pela porta. Alguns retornavam, outros não. Não era essa, no fim do dia, sua principal (e única) regra?
Tic-tic-tic.
Registrou em sua visão periférica as três idosas sentadas no canto do balcão e então entendeu as estranhezas daquele dia. Com um baque quase físico, ele viu novamente a realidade dobrar, desta vez em expansão. A presença daquelas três mulheres que alternavam a visão, que teciam eternamente explicava a última hora... Ele estava em um momento em que as leis que gerem o Todo não se aplicavam e o Paradoxo aproveitava seu espaço.
Zack fez o que podia fazer diante da situação: virou a garrafa de whisky no copo e o ofereceu para o homem de branco.
“Por conta da casa.” Olhou para os outros dois homens sentados perto da Jukebox. “Tenho que atender meus outros clientes. Pegue sua caixa e vá, faça o que você tem de fazer. Ache um lugar seguro... ache o deserto do qual falou, enterre essa merda que você carrega e coloque uma bala em sua testa, o que mais posso dizer? É o correto? Não sei. Mas não posso interferir em seu caminho. E também acredito que não iria adiantar queimar essa velha caixa de cigarros. Como queimar uma idéia, ainda mais uma que simplesmente se renova?”
Zack então deu uma última olhada para o homem de branco, o pirata moderno. Resistiu à intensa necessidade de tocar na caixa e começou a caminhar até as velhas.
Pensou melhor e foi até a Jukebox. Iria seguir o ritual.
Ele nunca viu o homem sair, certamente cambalenate. Ele nunca viu se ele levou a caixa ou se estava com o tapa-olho.
As primeiras notas agressivas de The Rime of the Ancient Mariner dispararam da Jukebox.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Erva Daninha

Nos encontramos no refeitório todos os dias. Nunca conversamos mas a conheço. Almoça perto de mim. Não por afinidade muda mas pela preferência do ambiente mais remoto. A postura na cadeira é exemplar. Talheres posicionados milimetricamente antes da primeira garfada.

A primeira vez que a reconheci fora do trabalho, e tive um misto de simpatia e repulsa, foi quando a vi no ponto de ônibus. Roupas sociais perfeitamente alinhadas, cabelos sem nenhum fio fora do lugar, corpo ereto. Perfeito exceto pelas lágrimas. Me impressionou.

Não imagino que seja vontade própria sua solidão. Parece-me que ela tentou nestes últimos anos. Porém, nessa década que trabalho na empresa, lembro-me de ter visto poucas vezes sua interação com outro que não perguntas metódicas sobre o trabalho, que não a falsa educação polida de dizer obrigado e assinar atenciosamente cada comunicação interna.

Uma espécie humana que confia naquilo que estático. Orgulhoso de ser a pedra permanecida no caminho. Estática, sem olhar para os lados, os meios não justificam os fins porque nunca há ação, somente métodos. Deus, estou saindo de mim.



Laura me deixou hoje pela manhã. Preparou suco de laranja como despedida. Tentei resistir. Mas chorei. No banheiro, longe do cachorro, me debulhei em lágrimas. Não queria que ele se assustasse com os soluços, latindo feito um louco. Então, tomei um banho, liguei o ar condicionado do carro no menor grau possível e vim para o trabalho. Silencioso, plástico, fodido por dentro.

Dois minutos antes das oito horas, a funcionária está a frente do sistema de registro de entrada. Todos os dias aguarda o momento preciso para inserir sua digital, confirmando a presença diária no emprego. Hoje ela me disse bom dia, sentou-se em seu cubículo e retirou a maçã da bolsa, colocando-a estrategicamente a sua direita.

Eu queria ser como ela. Independente, autômato, dono de si. Sobreviver com estilhaços no corpo e membros destroçados. Mas a frente de meu computador, minha planilha de cotações, tudo que eu sabia não fazer era mentir. 

segunda-feira, 23 de abril de 2012

ninguém compreenderá a última risada de teu cadáver

- Você não me respondeu.

- Oi?

- Não me respondeu. Não me ligou no dia seguinte pra dizer o que pensava.

- Sobre o que?

- Como sobre o que!? Eu te fiz uma pergunta. A pergunta. E te deixei ir na noite fria...

- Ir na noite fria? Tu é o que, agora, um poeta?

- Não fuja do assunto. Você não respondeu.

- Não sei a pergunta.

- Mas eu te falei.

- Desculpa.

- Filho da puta.

- Eu sei.

- Passei a vida inteira dos últimos dias aqui pra você, olhando você, convidando você.

- Às vezes convidar para entrar é o mesmo que pedir pra ir embora.

- Não! Quer dizer... como assim?

- Preciso ir.

Levantou-se e saiu pela noite fria. Joshua, no balcão do bar do Clube, pestanejava sonhando com uma realidade estranha onde se chamava Zack e, com outro nome, comandava o mesmo bar. As velhinhas na mesa do canto ainda fiavam um xale. Joana tomava um chá. A menina, filha de Joshua, brincava com a jukebox que, para ela, era uma gigantesca caixinha de música. A noite esquentava pouco a pouco.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

As Várias Vidas de Zack - 1


Há momentos em que o tecido da realidade permanece fino, instável em sua própria natureza. Nesses momentos, uma física anárquica toma conta de pequenos espaços mundanos; o caos impera e o paradoxo reina. São momentos mágicos, musas quase sobrenaturais para poetas loucos ou romancistas psicóticos, momentos esses que são causados por eventos aleatórios ou entidades poderosas.
Zack, proprietário e bartender do velho Clube da cidade, estava preso em um desses momentos, desencadeado pela presença de três entidades míticas. Naquela singela tarde, uma tarde sem nada de especial na ignorante opinião de Zack, a vida de algumas pessoas tomariam rumos inesperados. Na verdade, o próprio passado iria mudar. Assumindo um ponto da sinceridade ainda maior, caro leitor, durante todas as mudanças, os destinos, os caminhos sempre permaneceriam os mesmos, pois seriam únicos, eternos.
Vestia uma camiseta branca com os quatro símbolos do Led Zeppelin estampados, calça jeans desbotadas e um velho par de tênis, confortáveis justamente por estarem desgastados. Zack tentava levar a vida na maior leveza possível; quando não estava repondo o estoque de cerveja ou preparando batatas ou limpando as mesas, ele lia grossos livros sobre a história da ciência e escutava discos velhos de rock setentista. Ficava fora dos problemas de seus clientes, oferecia apenas um pouco de batata frita e conforto etílico. Sempre parava de servir os que deixavam para trás a linha da sobriedade e ficava fora de seus problemas pessoais, essa era a única Regra de Zack.
A vida do bartender seguia suave e sem surpresas. Zack era, no entanto, infeliz. Sentia que vivam em um prisão temporal. Não acreditava que vivia o destino certo, estava sempre deslocado. Mesmo em no conforto de sua cama, na familiaridade da pequena biblioteca particular, algo estava errado. Zack não era quem deveria ser, esse era o problema.
No Clube, as mesmas pessoas engoliam batatas fritas e cervejas; a jukebox tocava Stargazer, do Rainbow e a televisão passava algum silencioso tumulto estudantil. O Clube não era famoso pela televisão pendurada atrás do balcão: era a jukebox que trazia de volta os clientes. No Clube você poderia, com uma moeda de 25 centavos, escutar todo o Rubber Soul, dos Beatles ou um dos Remasters, do Zeppelin. Terminou de lavar um copo e andou até o fim do balcão, onde uma mulher terminava a terceira cerveja da noite. Ela era japonesa, baixa e magra. Diria que estava na casa dos cinquenta, mas não se atreveria a adivinhar a idade de um japonês, eles têm uma estranha mania de sempre paracer jovens.
“Mais uma?”, perguntou.
Ela considerou por alguns instantes. “Não, obrigada. Vou pegar a estrada.” Ele a estudou mais atentamente. Vestia uma jaqueta de couro e tinha ao lado um capacete vermelho.
“Você está em condições de dirigir?”
“Não me julgue pela aparência, jovem”, ela sorriu. Não conseguia se lembrar da última vez que fora chamado de ‘jovem’. “Consigo lidar bem com minha bebida. Além disso, acho que a cerveja vai me acalmar um pouco, vou fazer uma viagem longa.”
“Para onde?”
Ela olhou com profundidade para o bartender, talvez medindo a confiança que ele emitia. Por fim, decidiu contar o que iria fazer naquela tarde, confiava em alguém que gostava tanto de Zeppelin, pensou. Não fazia diferença alguma, concluiu, apenas alguns quilômetros e nada teria importância. “A pergunta está errada. Para quando eu vou, você deveria perguntar.” Ela colocou uma chave sobre o balcão. Era uma chave comum, Harley Davidson dizia em seu corpo.
“Uma chave”, ele respondeu sem qualquer emoção.
“Não, não, jovem. A chave. Estou com a moto do meu marido... falecido... falecido marido. Ele sempre amou motos e mesmo levando uma vida simples, juntou dinheiro suficiente para comprar uma Fat Boy. Ano passado ele morreu. Câncer, essa Vadia. Eu me conformei”, segurava algumas lágrima, Zack percebeu, “e continuei a viver, o que mais poderia fazer? Nunca tivemos filhos ou amigos próximos, vivíamos um pelo outro... bom, ele vivia pela moto também. Sabe que cheguei a ter ciúmes da moto? Uma noite peguei um martelo, decidida a destruir aquela máquina maldita que dividia comigo meu marido, como aqueles primeiros artesãos que se rebelaram contra as primeiras fiadeiras que vi em um documentário.” Ela ponderou alguns segundos e retomou: “Os artesão não diviam os maridos, quero dizer. Eles destruíram as máquinas que roubavam os empregos. Por fim, não fiz nada, não tive coragem de destruir parte importante da vida do Tezuko. Ele andou naquela Fat Boy até quase o fim de suas energias, era impressionante a determinação de rodar alguns quilômetros, mesmo fraco e passando mal por causa da quimioterapia.”
Zack olhou ao redor. Um homem estava sentado perto da televisão, abraçado a uma pequena caixa de madeira como se fosse o maior tesouro da Terra; três senhoras sentavam na outra ponta do balcão, uma lia o jornal do dia com a ajuda de grossas lentes. As outras duas senhoras tricotavam com visível esforço para enxergar o que faziam. Outras duas pessoas sentavam perto da jukebox. Stargazer se aproximava do fim.
“Não vou demorar muito”, ela soltou em um tom ofendido.
“Não se preocupe, acho que todos estão bem. Continue, por favor.”
Ela o encarou, com os olhos pequenos e brilhantes. Vivos, ele pensou, como os olhos de uma criança que ainda acredita em magia.
“A quimioterapia era um veneno para meu Tezuko. Ele vomitava e vomitava e vomitava. Às vezes dizia que iria virar do avesso. Se arrastava pela casa, branco e sem energia, mas quando estava perto da moto, um pouco da cor voltava nas bochechas e rugas de seu rosto”, lágrimas caíam livremente. “Ficava longas horas limpando cada centímetro da Harley, medindo o nível do óleo, polindo o tanque, verificando as marchas. Acho que a moto lhe deu alguns meses de vida. Mas no final, o terrível dragão venceu e agora ele é um punhado de pó. Depois que ele morreu, pensei em me livrar da moto e achei um comprador, mas no dia antes de receber quase o mesmo valor de uma moto nova, um envelope escorregou por baixo da minha porta. Meu coração gelou e caí de joelhos no chão da cozinha. Era a letra do Tezuko!”, a velha japonesa agarrava Zack pelos ombros, com força suficiente para deixar marcas vermelhas de dedos.
Mais uma maluca com muito álcool na cabeça, ele amaldiçoou.
Ela largou o bartender e apontou para a chave pousada na madeira do Clube. “Dentro do envelope tinha essa chave. Com mãos trêmulas, fui até a moto e a testei. Precisei de um pouco mais de força para dar partida, mas a chave funcionou como deveria. Quem tinha me mandado a chave? Meu nome no envelope tinha um smiley, um brincadeira que ele sempre fazia quando escrevia algo importante para mim. Fazia anos que não andava na moto, mas a tirei da garagem mesmo assim, vesti minha velha jaqueta e coloquei o capacete. Foi maravilhoso sentir o cheiro do cabelo de Tezuko, ainda que fraco. Quando percebi, estava na estrada, longe de casa. Dirigi nove horas seguidas. Sem parar, sem descansar, sem precisar de mais combustível. Aliás, o tanque continuava cheio. Dormi em um hotel qualquer e voltei para casa. De manhã, quando peguei o jornal, vi que marcava o dia anterior na capa. As mesmas manchetes, as mesmas fotos, os mesmos assassinatos. Achei que era um erro do entregador, mas tudo bem, sem problemas, não iria causar confusão por causa de um jornal errado... não sou esse tipo de pessoa. Resolvi preparar um pouco de café e separar os documentos da moto. A volta tinha sido boa, o barulho do motor agradável, mas o que eu iria fazer com uma moto? Achei, naquela hora, que o Tezuko queria que eu tivesse dado uma última volta e pediu para algum amigo para entregar a chave”, ela brincava com o objeto, rodando entre os dedos.
Zack não sabia o que dizer, apenas se debruçou no balcão e alcançou uma cerveja. Estava fisgado pela história da velha japonesa. Mesmo ferindo sua única regra, queria ouvir a história.
“É claro que separei a chave que chegou no envelope, tinha a intenção de guardar com carinho: a última lembrança do meu amor de toda a vida. O comprador, no entanto, me ligou e disse exatamente as mesmas coisas que tinha dito no dia anterior, na mesma ordem, na mesma animação, marcando para o encontro para o próximo dia. Será que eu tinha circulado o dia errado no meu calendário? Liguei a televisão e o jornal de ontem estava passando. Então eu pensei que...”
“Você viajou um dia no passado”, ele concluiu.
“Exatamente. Agora, você deve estar achando que sou apenas uma japonesa velha e bêbada, mas estou bem sóbria, apesar de ainda continuar velha. Eu pense, hey, não posso deixar isso assim, tenho que testar. Coloquei o casaco e voltei para a moto sem pensar... afinal, quem iria continuar essa loucura toda se tivesse parado para raciocinar? Liguei a moto e dei a partida. Antes de sair, tive uma idéia louca. Precisava de alguma prova, alguma marca. Desliguei a moto e, com a chave, fiz um pequeno corte no meu braço. Tive que voltar para casa e fazer um curativo, saiu mais sangue do que eu queria. Dirigi as mesmas nove horas, dormi no mesmo hotel. Ninguém falou comigo como se me conhecesse, como se eu estivesse voltando para o mesmo hotel pelo segundo dia consecutivo. Quando voltei, o jornal, a televisão, o telefonema... tudo igual. Meu braço estava sem o corte... até mesmo o curativo havia sumido, meu corpo viajou junto, percebe? Não fui contra a correnteza do rio, a própria água andou comigo. Testei novamente, mas dessa vez dirigi dezoito horas. Saí de casa na quinta-feira e retornei na terça-feira da mesma semana.”
Ela se levantou e deixou o dinheiro das cervejas perto do copo. Sorriu deliciosamente para ele.
“Tenho que ir...”
“Zack.”
“Tenho que ir, Zack. Você pode achar que sou louca, mas isso não tem qualquer importância, tem? Você não vai se lembrar de mim. E se lembrar, não vai se perguntar onde está aquela velha louca, mas quando está aquela velha louca”, ela piscou para ele e começou a andar para a saída. “A estrada me chama e tenho muitos quilômetros até conseguir voltar para um diagnóstico precoce... assim vamos matar a Vadia. Quando chegar no dia certo, depois do tratamento do Tezuko, venho com ele para tomarmos uma cerveja.”
Zack assistiu a velha japonesa comicamente vestida e disse a única coisa que poderia ser dita:
“Boa sorte!”
Ela agradeceu, sem se virar, e saiu.
Ao fundo, o bartender ouviu risadas agudas e olhou para as três idosas. A mulher que lia jornal retirou os óculos e passou para a que estava sentada no meio, ela pousou no rosto as grossas lentes e começou a assistir o que passava na televisão, enquanto guardava as agulhas de tricotar. Perturbado, ele viu que ela havia feito apenas uma longa linha com a lã. Na esquerda, a terceira velha desmontava uma coluna feita com a mesma lã, apenas para começar a tricotar novamente.
Kashimir tocava na jukebox.
Enquanto andava até o homem que portava a pequena caixa, Zack se pergundou quando estaria a velha japonesa.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Esqueça Socrates

"Quanto tempo", foi a frase de minha terapeuta ao me ver. Duas palavras ditas de maneira tão bem composta que não compreendi se era ironia ou apenas constatação. "Não me lembro quanto", e não me lembrava. Não me agarro aos calendários.

Conversamos sobre a escrita literária. "Não consigo compor", disse. "Parece um texto fraco, mimado, raquítico", continuei. "E porque você simplesmente não escreve, em vez de pensar?", perguntou-me. "Mas isso não é literatura", e não era.

Quando adolescente, em processo proto-escritor, tive a fase poeta. Em versos de rimas pobres, temáticas frias e romanticas. Ao envelhecer, assumi a verve prosaica. Falo demais, escrevo também. O sincretismo poético que vá aos diabos. 

"O problema é que não dá para ativar um sistema. Despertar com a consciência de estar pronto. Sim, agora sou um escritor. Há elementos mais frágeis que isso. Doí", repliquei. Nunca era questão de escrever. Palavras seguem palavras, as vezes sem razão. Explosões não são literatura.

Mas eu precisava de um caminho, um significado para que aquelas palavras não fossem em vão. As mesmas palavras repetidas, oração de rosários aquebrantados pelo tempo. Eu queria levantar-me da poltrona e sair da sessão. Negava minha incompetência de escrever. Por falta de esforço. Por me acreditar especial. Venham, venham até a mim, meninas. Me inspirem com seus corpos nus, musas. Quero banhar-me de sua insensatez.

Eu tinha vinte e cinco anos. Não sabia de nada. 

Continuo sem saber. 

domingo, 15 de abril de 2012

o cheiro no ar

Joana debruçada no balcão, Joana bored, Joana sem clientes que a entendam. Joana sem cliente a atender. Viu a porta de entrada balançar ao vento do último cliento que saiu, um homem meio frio com um sorriso eterno face ao rosto. Não era pro seu gosto, pensou Joana, mas não era de todo mau.

Vitrola tocando um samba antigo samba Cartola, Joana de rabo de olho olhando a vitrola. Lá fora o vento do homem saído levava resquícios de alguma coisa, futuro prenhe, de algo não ido mas pra onde ia. O homem saído só sabia que caminhava no rumo ao sol.

Joana não sabia, mas podia imaginar.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Ela Correu Todos os Horizontes


A chuva torrencial castigava o guarda-chuva. Vestia capa para chuva e deixava sua pasta estrategicamente posicionada em seu corpo para melhor proteger os importantes papéis, mas sabia que invariavelmente a água iria arruinar meses de trabalho. Novas reuniões, novos acordos para conseguir todos os envolvidos sentados na mesma mesa ao mesmo tempo. E assinar os malditos documentos. Pela segunda vez. Tudo por causa de sua persistência em não ter um carro. Aquela cidade tinha metrôs suficientes, não havia necessidade de um carro para suas tarefas.
Os próximos meses seriam um inferno. Minha vida é um inferno, ele pensou desanimado. Um súbito baque em seu ombro esquerdo causou um choque em sua mão e a pasta, feita com um couro barato, já desbotada e descascada, foi ao chão. O impacto destravou o sistema de segurança e diversos papeis rodaram pela calçada, arruinando qualquer conteúdo neles impresso. Alcançou rapidamente a pasta, procurando salvar parte de seu trabalho e em seguida, olhou para o imbecil que o empurrara. Segurando o guarda-chuva entre o queixo e um dos ombros, viu uma silhueta feminina, pernas torneadas sob uma calça preta, agarrada. Cabelos loiros, empapados pela chuva. Os tênis de um rosa, acentuado pela água. Perfeita, ela corria apesar da chuva. Mais tarde, pensaria que ela corria pela chuva. Uma mão levantada, um pedido de desculpa. Ela corria na chuva, se distanciando até sumir no horizonte.
Ele continuou ajoelhado, a pasta a meio caminho entre o chão e seu corpo, o guarda-chuva comicamente pendurado em seu pescoço, vendo a mulher correr até desaparecer. Logo, ele tinha apenas os tênis cor-de-rosa na cabeça.
Naquela noite, pendurando os papéis molhados no pequeno varal de seu apartamento, ainda molhado pela chuva, com o nó frouxo da gravata que usou por toda a semana, ainda pensava na corredora. Via aquela bunda redonda balançar, as pernas em perfeita coordenação, avançando determinada. Contou os passos dos tênis cor-de-rosa, contou as gotas que molhavam o cabelo dourado.
Durante o jantar, quando percebeu que as assinaturas estavam irremediavelmente arruinadas, apenas um conjunto sem nexo de manchas azuis e negras sobre o papel sujo, pensava como seria o rosto da mulher. Como seria o rosto de alguém que ele não conhecia? Como era o nariz de uma pessoa que ignora o que parecia ser o segundo dilúvio para sair de casa e correr? Ele se prendeu a cada detalhe daquela pessoa perfeita que existia somente em sua imaginação, desenhou na tela de sua mente a curvatura de seus olhos durante um sorriso, escutou o som de sua risada doce e sincera, uma mulher perfeita que em sua (absurda)mente, seria o simulacro dos tênis cor-de-rosa que derrubaram sua pasta. Traçou um esboço de seus seios, fartos, consistentes. Mamilos rosados, endurecidos pela água que caia do céu. A marca da apendicite em sua barriga lisa, ela com certeza tinha feito uma operação para retirar o apêndice, ele sabia.
Enquanto escovava os dentes, levantou o pijama e sentiu nojo de seu próprio corpo, a gordura vazando dos limites de sua roupa, os músculos flácidos balançando livre em seus membros. As unhas dos dedos do pé estavam gigantes e tortas, os pêlos de sua costas estavam se espalhando ganhando terreno e iniciando novas colônias. Criada pela comida hipercalórica e pelo abuso constante de doces e cervejas, a barriga se destacava de seu tronco. O que estou fazendo com minha vida, onde fiz as escolhas erradas?, começou a se indagar. Às vezes sentia que estava deslocado de onde deveria estar, tinha coisas importantes para fazer, mas não ali, não na vida que levava. Vivia fora do que era para ser. Se ele corresse, se fosse rápido, poderia alcançar o que lhe era suposto. O real.
Dois pensamentos simultâneos cruzaram sua cabeça, confortavelmente afundada no travesseiro de penas. Imaginou do que ela estava correndo. Sabia que estava vestida para se exercitar, mas do que ela corria? E até onde poderia ir, essa era o que ele queria mais saber sobre ela, a corredora sem face. A mulher que mais cedo havia derrubado a pasta de couro barato na água e destruído as assinaturas, preenchia agora tênis cor-de-rosa na mente do homem que dormia. E os tênis avançavam, um de cada vez, altenando e trocando, indo e vindo... Determinados e regulares, desviavam da água, dos galhos; paravam nos sinais fechados, pulando e correndo no lugar para não perder o ritmo. E avançavam. Desciam ladeiras, subiam avenidas. Não importava o número de horizontes, ela percorria até desaparecer gradualmente. Até quando, ele não sabia, mas em seu sono ela corria para sempre.

Seus pensamentos continuaram a cruzar paisagens irreais com a mulher. A fantasia continuou por todo aquele dia. Nas estações de metrô e em sua mesa de trabalho, enquanto diferentes pessoas gritavam com ele por causa dos papéis, agora secos, amassados e das assinaturas indistinguíveis, durante o café e depois ainda, quando novamente as mesmas pessoas apontavam um dedo gordo em sua face, berrando com uma expressão maligna enquanto grãos de comida caíam junto à saliva.
Ela ganhava quilômetros, ganhava ruas, avenidas e cidades. Nada poderia Pará-la. Estava no controle das ações em seu cotidiano.
Quando um sujeito particularmente desagradável estava sendo especialmente agressivo, ameaçando seu emprego e também, por que não, sua própria existência, suas pernas se tornaram inquietas. Enquanto suas mãos alcançavam a mesma pasta de couro desbotado para quebrar o nariz e três dentes do gordo infeliz que gritava e cuspia em seu rosto, ele planejou entrar na pequena loja de materiais esportivos que havia não longe dali. No momento em que seus pés encontravam os computadores do escritório, começou a refletir que tinha de começar em um ritmo mais lento, estava fora de forma. Com as calças no joelho e a urina caindo pelos corredores do andar, ele sabia que tinha que começar a correr imediatamente: dois seguranças avançavam em seu caminho.
Com os novos tênis nos pés, azuis e com longas listras brancas, desenvolvidos para corridas de curta distância, deu os primeiros passos na sua nova atividade. Para cada metro vencido, um pouco de sua rotina se desintegrava. As pessoas olhavam com ar inquisidor para o homem que corria de terno e tênis azuis com listras brancas. Sentindo calor, se livrou do terno e da gravata, deixando-os cair. Vão, estão libertos, pensou com um sorriso no rosto. Eu estou livre!
As pernas doíam, sua barriga balançava desconfortavelmente, os ombros gritavam a cada rotação corporal, mas ele continuou. De repente, um novo encontrão quase o derrubou. Pernas perfeitas passaram por ele. Os cabelos loiros, agora presos, balançavam lindamente. Os tênis eram pretos, os outros estavam secando em algum lugar, deduziu. Ele acelerou e esticou a mão para agradecer a pessoa que mudara sua vida, mas hesitou.
Em sua mente ela continuava a correr. Imponente e certa do que seria preciso. Se olhar para seu rosto, ela será mais uma pessoa. E pessoas não podem correr incansavelmente, elas se deixam grudar onde estão e terem suas faces lavadas com a saliva de seus superiores.
Retraiu o braço e, sem colocar um rosto em sua corredora perfeita, continuou para descobrir até onde poderia ir.
Sem o terno, sem gravata, sem a velha pasta, ele correu.


segunda-feira, 9 de abril de 2012

tubarão e o gafanhoto

- Quando roubaram minha bicicleta eu saí para correr...

- Quando você saiu para correr roubaram sua bicicleta, você quer dizer?

- Não. Quando desci a vizinha me disse "cadê a bicicleta?" e eu disse "não sei". "Pois estava aqui às 7h e às 9h não estava mais", "Então roubaram", respondi. Ela disse "E o que vais fazer?", "Vou sair pra correr. Boa tarde, feliz páscoa".

- E daí?

- E daí nada. E daí que só corri. Terrenos baldios são campos floridos na primavera. Atrás do cemitério há uma favela, dentro dele também. Um submundo de cada lado, suponho. Depois o vizinho falou "Vá lá ver se acha a bicla".

- A que?

- Bicla. É bicicleta em Portugal. Bike, magrela, tu sabe. Aí eu disse "Não, magina, não vou procurar problema". E ele fez cara de enfado e disse "Mas devia de ir lá, aqueles moleques podem estar por aí com ela". E é, podiam, mas que eu ia fazer? E pra quê? Saí pra correr, novamente.

- Duas vezes?

- Não foram no mesmo dia.

- Ah.

- No cruzamento há um rato esmagado, fresco, ainda quente. Passo ao lado, reverencio, penso na morte dele e sigo correndo. Uma vez pisei num gafanhoto que grudou no meu shorts enquanto eu corria. Por descuido eu fiz de rato o gafanhoto. Corremos juntos por 2 quilômetros e, de repente, na curva, ele caiu. Só vi quando ouvi o barulho trovejar dele morrendo a meus pés. Sob meu pé, na sola do pé, no meu tênis preto de correr.

- E?

- E nada. Foi foda, na hora, dei meia volta e corri feito um filho da puta, sem pensar em nada. "Porra, porra, por que não presta atenção por onde corre?" Mas não havia mais o que fazer. Ele estava morto e eu continuava correndo.

Joana retirou a garrafa vazia de cima da mesa, serviu outra cheia e amendoim.

- Na rua de entrada ao cemitério, que eu sempre corro, também sempre vejo um senhor deficiente andando por ali, esperando o ônibus, depende do tempo que levo pra ir e voltar. Não sei o que ele tem, mas não usa bengala: em vez disso, tem um cajado. Acho que é mais fácil pra se locomover. Eu corro por ele.

- Como assim?

- Eu corro por quem não pode correr. Corro por ele, pelo rato morto, pelo gafanhoto, pelo cavalo aleijado que é sacrificado no morro, por todo mundo por quem passo enquanto corro. Tu consegue imaginar o quanto de velhinhas obesas maquiadas com bengalas eu encontro no caminho? São várias, é impressionante. Corro por elas também. Corro pelos tubarões.

- Porra, pelos tubarões?

- É. Quando pescam tubarão e içam pro convés do barco eles não tem pernas nem tem braços pra escapar, pular pro mar de volta, fugir dali. Corro por quem não pode correr.

- Pelo Stephen Hawking?

- É, por ele também. Por todo mundo eu faço essa volta todo dia na cidade, correndo do lado de carros e ultrapassando congestionamento.

- Hey!, quer tremoços?

- Boa ideia. Joana...!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Velho, a Cachalote e o Mar


Olhou para o relógio, impaciente. Depois relaxou, afinal tinha o resto de sua vida para ficar naquela fila. Alcançou o kindle em sua pasta de couro e retomou a leitura de um dos livros de Murakami. Entre os dedos, tinha um moeda. Uma brisa acariciou o rosto quadrado e cansado do homem encostado na parede, posição que lhe permitia jogar o peso do corpo em uma perna de cada vez, o sol da primavera banhava toda a fila, tornando a temperatura agradável. Depois de algumas páginas a fila novamente andou.
“Finalmente”, alguém falou atrás dele. “Não tenho minha vida toda para ficar aqui!”, o tom sarcástico da frase arrancou-lhe uma risada, liberada em uma explosão engasgada. Ainda tossindo ele se virou e apertou a mão do responsável pela piada. Pela primeira vez em sua vida, teve o prazer de literalmente chorar de rir. Ainda dobrado sobre o próprio estômago, lutando por ar e pensando na ironia de morrer de tanto rir no lugar em que estava, ele reparou no tênis do homem que estava atrás dele. Calçava um par surrado de tênis brancos para corrida. Manchas de terra cobriam as laterais dos tênis.
“Gosta de correr?”, perguntou depois de finalmente recuperar o fôlego.
Não poderiam formar maior contraste. Ele vestia um terno de corte perfeito, costurado sob medida, uma gravata de seda e ostentava um corte de cabelo que provavelmente era mais caro que o livro digital que tinha nas mãos. Aproveite que está observando o estereótipo apresentado, caro leitor, e veja suas mãos, note a marca pálida ao redor do quarto dedo da mão esquerda, onde uma aliança costumava ficar.
O homem com quem conversava vestia uma flanela estampada com um padrão quadrangular, verde e vermelho. Grossos óculos sustentados por uma armação barata, cabelos monumentalmente bagunçados e um livro de capa mole nas mãos, com uma pequena moeda entre as páginas, ele notou. O pobre livro parecia ter sido impresso pelo próprio Gutenberg e o modo como o jovem o segurava não contribuía para seu estado de conservação.
“Quase todos os dias. Estava precisando me exercitar, você sabe, muito tempo sentado na frente do computador, trabalhando e escrevendo, escrevendo e trabalhando. E não foi uma transformação lenta, gradual, ah não! Foi um... boom! Numa semana eu era um palito, na outra não conseguia entrar nos meus jeans.” Tinha uma voz calma e monótona, deixando pouco espaço para continuar o diálogo. Ele percebeu que o jovem não gostava muito de conversar.
“Eu também gosto de correr. Odiava no começo, era um sacrifício sair de casa. Todo o ritual de me trocar, colocar a roupa desconfortável de academia, desligar a TV e finalmente sair do sofá era muito cansativo. Eu trancava a porta de casa já pensando no momento em que estaria de volta. Mas, devagar, conforme fui superando um ou dois quilômetros antes das minhas pernas virarem geléia, fui gostando de correr. Meu cérebro viajava para bons lugares quando eu estava na academia.” Quando o jovem não disse mais nada, pensou em vão em algo para falar. Voltou para sua posição, observando os olhares desinteressados das outras pessoas na quilométrica fila.
“Eu corro em parques”. As palavras chegaram com surpresa em seus ouvidos. “Corro para ver pessoas, desviar dos cachorros e desafiar os carros que teimam em não respeitar as faixas de pedestre”, o jovem continuou com uma voz tímida.
“Eu percebi que você corria em lugares abertos”, apontou com o queixo, “seus tênis não estão mais exatamente brancos.”
“Isto? Isto não é terra, é saibro. Sempre evito o mesmo percurso, então algumas vezes tenho de cortar campos de futebol ou quadras de tênis. Normalmente os jogadores me xingam... principalmente se eu paro para roubar algumas bolas e um ou dois gatorades”, os dois gargalhavam. Estudando sua fisionomia, o jovem disse: “Você não parece o tipo de cara que chega tarde do trabalho e, no lugar de abrir umas cervejas e assistir um jogo de futebol qualquer, sai para correr.”
“Comecei por causa do Haruki Murakami.”
“O cara do Norwegian Wood?”
“Ele mesmo. Tem um livro dele sobre correr longas distâncias quase todos os dias e como isso o influência. Fiquei curioso enquanto lia e decidi tentar, apenas para confirmar as coisas das quais ele falou. Para ele, qualquer ação pode ser meditativa, desde que você a realize vezes o suficiente... qualquer coisa, como por exemplo correr. Seu corpo se acostuma, os músculos respondem ao estímulo e logo sua mente começa a divagar.”
A fila andou e os dois se calaram por alguns momentos. O homem de terno estava de costas para a direção da fila, saboreando aquela discussão com um prazer raro em sua vida. Pelo menos nas últimas decadas. Sem perceber, brincava com uma aliança invisível em sua mão esquerda, mão que segurava, persistente, a moeda.
“Eu gostaria de ter lido esse livro, às vezes teria me estimulado mais”, continuou o jovem. “Meus amigos que leram algumas coisas dele sempre falaram que é um autor obrigatório. Parece que as histórias dele chegam como um meteoro disfarçado de livro e muda completamente a maneira de pensar. Sempre pensei nele como uma espécie de droga, como a heroína, que muda a química do cérebro e, de repente, você está viciado, você precisa daquilo para seu cérebro estar no estado normal.”
“Hum... Nunca havia pensado dessa forma. Posso concordar.” Ele olhava para a pequena tela do livro digital, lendo palavras aleatórias. “O Murakami é um cara de sensibilidade, que sabe como escrever sobre a vida em detalhes, de uma perspectiva talvez única.”
“Talvez. A verdade é que muita gente soube escrever da vida em uma perspectiva única. A minha vida, por exemplo, pode ser comparada ao Moby Dick. Não que eu seja uma espécie de Ahab, mas com certeza tenho minha cachalote branca.” Um esgar cruzou o rosto do rapaz.
“Uma obsessão, hein?”
“Forte. Escrever livros, contar histórias. Minha paixão, minha maior frustração. Nunca fui capaz de escrever uma linha de frases fortes e sólidas, tudo que criava era frágil, sem vida, insípido e simplesmente não funcional. Escrever é minha baleia branca e queimei tudo e todos que tinha para perseguí-la, essa vadia do mar.” O jovem de tênis de corrida fechou o livro, revelando a capa surrada do volume, com quatro imagens distintas, representando um ciclo anual. Começo, meio e fim: Quatro Estações, com Stephen King escrito em letras garrafais e chamativas.
“A maioria das pessoas nessa fila poderia contar a mesma história, garoto. Também tive minha obsessão, mas acho que sou outro livro. Eu alcancei aquilo que queria e fui teimoso em continuar, mesmo quando tudo começou a se deteriorar. Eu fui, por anos, o mais bem sucedido especulador nas bolsas. Dinheiro, fama, poder... amor. Eu tive tudo”, mostrou a marca da aliança para o jovem, “mas tudo acaba algum dia, não é? Infelizmente minha vida não foi um Murakami, eu fui um Hemingway, mais precisamente O Velho e o Mar. O velho teimoso... Santiago, se não me falha a memória, pegou um gigantesco pei-”
“Um peixe espada”, cortou o jovem.
“Um peixe espada. Ele fisgou esse peixe e foi arrastado para o mar aberto, bem longe da costa, longe demais, percebe? Santiago tinha aquele animal extraordinário, igualmente forte e lutador, o que o condenou. Pensando melhor, o que o condenou foi a teimosia própria, não a do peixe. Quando ele voltou para a vila o que tinha para mostrar?”
“Apenas o que sobrou depois dos tubarões.”
“Exatamente, apenas o que os tubarões deixaram. Meu peixe foi atacado pelo sistema, pelas horas que fiquei longe de minha família, pelas coisas que ignorei, pela ganância. Mas eu não queria acreditar que teria de escolher. Eu era um super-homem, um administrador nato. Poderia facilmente conciliar minha vida profissional com a pessoal.” Novamente ergueu a mão esquerda: “Esse é o resto do meu peixe.”
“Gostaria que minha vida fosse um Stephen King. Não precisa me olhar com esse espanto na cara, não me refiro aos litros de sangue, aos monstros, fantasmas ou alienígenas anais. Conta Comigo, eis uma lição para carregar. A aventura, a amizade, a magia... e um pouco de ingenuidade. Não tem como ser mais perfeito! Nós gastamos os dias, um atrás do outro, na espera de envelhecer e morrer. Buscamos por distrações para não ficarmos entediados nesse meio tempo, eis a pura verdade. O certo seria viver e não apenas existir. Eu nunca andei nos trilhos do trem para achar um corpo, por assim dizer.”
Enquanto a fila novamente andava, o homem de terno guardou o Kindle e afrouxou o nó da gravata. Os dois tiraram os calçados e jogaram em uma grande caixa, cheia de sapatos, chinelos, sandálias e sapatilhas. Daquele ponto em diante, todos estavam descalços. Mais duas pessoas na fila, um velho e uma mulher na casa dos trinta e sua espera acabaria. Um embrulho tomou conta de seu estômago.
“Meu maior problema são as pessoas. No meio em que vivi, não havia bondade, apenas uma gigantesca arena, onde a lei era matar ou morrer”, ele disse enquanto desabotoava a camisa. “Não há felicidade dessa forma. Não existe tal coisa como pessoas boas num lugar em que você tira suas chances diretamente das mãos de outros.”
“Acho que as pessoas são tão boas quanto a bondade que têm com quem menos gostam. Estamos nivelados no nosso pior. Digo, o que adianta você ser a melhor pessoa com seu amorzinho e um bosta com o resto das pessoas? Nesse caso, você é feito de merda, cara. Do mesmo modo, se você é bom com todos, mas um imbecil com... sei lá, uma garçonete ou um frentista, você ainda é feito de fezes. Puro cocô.”
“Sendo assim, sou uma péssima pessoa. Horrível mesmo.”
“Todos somos.”
Sorriram. Despiram-se ao mesmo tempo, com naturalidade e sem pudor qualquer. Manteve o relógio, entretanto: sem o aperto no pulso, sentia-se nu.
“Obrigado pela conversa. Há anos não tinha algum momento simples assim. Obrigado, de verdade”, ele disse com sinceridade. Olhou para a cabine azul e pensou no Super-Homem, no Doctor Who, na Inglaterra e, surpreendentemente, em um clube lotado de stripers. Estava na sua vez.
“Você é uma pessoa que sabe muito sobre a vida. Eu agradeço pela conversa”, respondeu o jovem, agora descalço e nu. O livro ainda estava em suas mãos, guardando a moeda entre as primeiras páginas.
Caminhou para a cabine, cantando Norwegian Wood em sua mente. Cabine Para Suicídio Nº 19, diziam as palavras pintadas na porta da cabine que lembrava um telefone público de Londres. Funciona com moedas de 25c e 50c, não retorna troco.
Antes de entrar, virou-se e disse ao jovem:
“Se você der tempo suficiente para uma história, ela invariavelmente acabará em morte. Acho que foi o Neil Gaiman, no Sandman.
Hesitou, ainda tinha tempo.
Nah, pensou, o que eu sei sobre a vida?
Apenas com o relógio e a moeda de 50 centavos, entrou na cabine.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Samba, Sampa!

Não gosto de São Paulo. Paulistanos que me desculpem, mas céu azul é fundamental. Aprecio os quinze minutos que faço para a maioria de meus trajetos. Não me simpatiza as três horas de ida ao cinema para um filme de noventa minutos. Abstenho do glamour e das redes abertas vinte e quatro horas.

A cidade é bonita em um flash. Na doce mentira de Caetano, na aspereza de Criolo. São Paulo é uma cidade boa para estar, não ser. Que saia da afirmação, e das sombras, a corja de inimigos. A defesa dos contrates, do múltiplo, do cubismo tudo ao mesmo tempo agora. Nunca desejei as possibilidades. Prezo pela calmaria e outros elementos que não posso comprar nem na capital, nem em parcelas, nem na minha mão é mais barato.

Enquanto me retiro da cidade, retrocedendo ao interior paulista provinciano, patético, próximo, ao alcance das mãos, sem Rede Globo, Bandeirantes, Comandante Hamilton, pergunto-me se um dia a cidade apenas foi. Não situava-se, como a maioria das grandes metrópoles, no crescimento desordenado e caótico, na lotação, na porrada, feia fumaça que faz e destrói coisas belas.

Há víscera no amor e ódio dos paulistanos pela cidade. Desejam esmagá-la sem sair de dentro, não querem expeli-la das entranhas. Não que me abstenha do efeito colérico. Amo São Paulo com uma restrição judicial. Juntos, há mais de trezentos quilômetros de distância. Da garoa à gente boa.

Tentativas não me faltaram para compreender. Retirar de campo o discurso birrento e inflamado. Observar o lado brilhante da vida. Falhei miseravelmente. Não conseguia completar uma frase sem utilizar mas. A adversativa que tudo estraga. Morno, quase quente.

Estaríamos feitos se só o amor não existisse em São Paulo. Mas você que acorda todo dia antes do galo cantar sabe, mesmo que lá no fundo, que falta é o que não falta. Perdoem-me o maneirismo, mas não existe SP no amor.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

miltinho

Entrou no bar e sentou a um canto escuro, o mais escuro e distante. Pensou em dizer algo quando Joana trouxe a cerveja, depois o cinzeiro, então o isqueiro, pensou em dizer mas não disse nada.

Apenas bebeu. Não havia nada para falar e, pensando nisso, não falou. Era uma noite longa e arrastada que começara há alguns dias. Perduraria.

Sentado no canto daquele Clube, com uma estrada para qualquer lugar aberta no peito fundo, esperou o tempo passar. Não era como se o destino já estivesse escrito por deus, nem como se cada um construísse o seu.

Quem faz o destino é o tempo.